Batendo
a cabeça para eleger o tema de lazer que iria discorrer neste espaço, recorro
às palavras sublinhadas por mim do livro A
linguagem da encenação teatral, dando origem a uma citação que reproduzo a
seguir:
"Ronconi
estava consciente de que o dispositivo por ele concebido permitia ao espectador
escolher entre duas atitudes: a de viver o espetáculo, participar dele como de
uma espécie de grande jogo e retirar dele um prazer lúdico, ou a de
contemplá-lo, à maneira convencional, do lado de fora. Quer dizer, neste último
caso, correr o risco de entediar-se, como acontece a alguém que está assistindo
a um jogo cujas regras não conhece". (ROUBINE, Jean-Jacques, 1998)
Luca Ronconi é o responsável pela inovadora
montagem em 1970 de Orlando Furioso,
uma adaptação acertadamente lúdica para um poema nominado épico. As inovações
do encenador italiano advêm da sua distância com relação ao teatro tradicional –
aquele com o palco elevado, apartado da plateia, formando uma caixa que permite
criar ilusão para o público – que assistimos costumeiramente nos dias de hoje.
Das alterações que o encenador italiano efetua, destaco a ação fragmentada ao
invés da sucessiva, obrigando o espectador escolher para onde sua atenção deve
voltar ao invés de abranger toda a ação que ocorre linearmente no palco, e
também, o público evoluindo de pé em um espaço vazio, impossibilitando os
espectadores de se situarem como público, dado que o espectador é forçosamente
parte integrante do espetáculo – que passa a ser, nesta outra mirada, um jogo
irresistível.
A jornada narrada nos serve neste
instante para adentrar as discussões em torno da famosa abstração conhecida
como a dicotomia entre a contemplação e a participação. A trivialidade sobre
este tópico pode ser expressa na opinião dos que afirmam que o ato de ler é
contemplativo mas nunca passivo, numa retórica que tenta contrabalancear o
conteúdo negativo de uma palavra com o caráter contundente da outra. A dúvida
que paira sobre nossas cabeças em reafirmar se uma atividade pende mais para a
contemplação ou mais para a participação logo se desvanece quando o debate
ganha teor classificatório, o que de fato sucede nestes combates teóricos.
No afã de investigar a fundo esta questão, foi
tomado como exemplo o vanguardismo de Luca Ronconi, que ao contrário de seguir
as convenções desviou-se para o caminho das pedras. Sua postura amplia a
mesmice do vaivém entre os concordantes e os discordantes; faz ir além,
transcende. O ponto-chave para solucionar o dilema que muitas vezes nós mesmos
produzimos, como a separação em dois grupos diametralmente opostos entre
aqueles que olham e aqueles que agem, encontra-se numa matéria tênue que não
enxergamos nas pessoas, mas que é da qualidade de todos: ser pulsante. Ser
pulsante quer dizer obedecer a uma ordem interna, que produz energia,
convertida ou não em movimento. Se formos estabelecer uma fronteira, este deve
ser o critério, não a usual divisão ativo/passivo.
Pondo de lado o problema sempre
controverso dos limites, a pergunta que anseio responder agora é: quando a
contemplação de algo direciona alguém a ser partícipe daquilo que está
meditando? E de modo secundário: se a contemplação é necessariamente um
pressuposto da participação? Para tal empreitada, lançarei mão de histórias
pessoais.
Uma delas foi minha ida ao Centro Cultural Banco
do Brasil, na Avenida Primeiro de Março, no transcurso da exposição Tarsila do Amaral - Um Percurso Afetivo.
Num dos ambientes destinados aos seus quadros, topei com a plasticidade de O Ovo ou Urutu. Mediante o exercício da
imaginação, distingui um ovo com seu cocuruto virado pra baixo, um ovo que
assim disposto espatifar-se-ia no chão caso não houvesse na base um amparo. E circulando
para outro elemento da figura, distingo uma serpente (o urutu) que se enrosca
em algo que também me dá a impressão de estar de ponta pra baixo. Na
representação do quadro, vislumbro um motivo para escrever uma poesia: o
aniquilamento do eixo. Mas o que o Ovo ou
Urutu é no seu contexto de 1928? Segundo fontes oficiais do site dedicado à
pintora:
"A cobra grande é um bicho que assusta e tem
um poder de 'deglutição', a partir daí, o ovo é uma gênese, o nascimento de
algo novo e esta era a proposta da Antropofagia".
Diante de tais observações, faço a inferência de
que eu contemplei a obra à proporção que eu vi destoar a realidade da
dimensionalidade do quadro. E de que eu não contemplei a obra, conforme ditames
estéticos do movimento modernista, embora esta fosse uma trilha. Então,
retornando à pergunta que me fiz anteriormente, o que devo responder diante
dessas considerações? De modo algum eu me inseri no território pertencente ao
quadro de Tarsila do Amaral, mas sim me vali sub-repticiamente do que sua arte
me provocava, segundo meus desejos. Assim sendo, não houve participação.
A segunda história data de mais de
sete anos atrás, quando eu estava no Ensino Médio. Àquela época, no empenho de
aprender autonomamente a língua de Cervantes, baixei uma série televisiva de
sucesso da Espanha, chamada Aquí No Hay
Quien Viva, que os brasileiros por razões óbvias desconhecem. Assisti as
cinco temporadas do programa sem o auxílio de legendas, e sem caçar comentários
de aficionados ou declarações dos atores na rede. Em outras palavras, fruí da
obra, ou seja, contemplei. Há dois anos somente, dois intercambistas de Madrid
circularam pelos corredores da faculdade, onde trocamos experiências. Numa de
nossas conversas, soltei que conhecia a série mencionada anteriormente, o que
os surpreendeu. E a mim também!
Pois eu não entendia como o porteiro da série era
o mais popular lá, principalmente porque era de todos os personagens, quem eu
entendia menos as piadas. Aí está o porquê! Era de quem eu compreendia menos a
língua, seu sotaque era reconhecidamente de uma zona mais desfavorecida
socialmente – o que eu não sabia –, em consequência, mais popular. Muitas
informações desveladas redimensionaram a série para mim, vista sob meu olhar
outrora mais ingênuo e menos relativizado.
Retornando às duas perguntas que me
fiz, que conclusões tiro, somando agora o que acabei de dizer? Antes de tudo,
reparo que a contemplação está atrelada a uma quantidade de informações
básicas, por tratar-se justamente de um objeto cultural simbólico. O olhar é
direcionado a uma produção de significados. Associativamente, julgo por isso
que a participação é efetivada SÓ no caso de existir uma interação entre duas
pessoas ou mais. A contemplação, em contrapartida, é um ato não compartilhado.
Se porventura alguém venha a mencionar o contra-argumento da escrita, retruco
que o interlocutor, embora ausente, faz-se sentir presente na evocação de uma
vida semelhante a de quem o supõe ali por perto, engendrando participação.
Que síntese, no fim, formulo? A
participação não está destituída da contemplação, aliás, esta é parte constituinte
daquela. Elas interagem entre si.
Raphael Giammattey
Machado Ricardo – Monitor de Lazer e Entretenimento I e II
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